Em nome de uma tradição ritualística de
“purificação”, que perdura há séculos, estima-se que haja, em Portugal, cerca
de 6.500 mulheres sujeitas ao processo de mutilação genital enquanto meninas.
Mesmo sendo uma prática punida com prisão, alguns microuniversos culturais mantêm-na,
assumindo os valores da tradição como superiores aos que a lei consagra. E apesar
das repetidas denúncias pelas organizações de direitos humanos, só agora surgiu
o primeiro caso em julgamento nos tribunais.
Não pode, contudo, a reflexão que se impõe esgotar-se na necessidade de aplicar uma pena exemplar perante o crime hediondo. Imperioso é também refletir sobre o que é ou não legítimo reconhecer e preservar como tradição. A tradição não é uma repetição mecânica do passado. É o passado renovado. Segue, por isso, um percurso que implica perda ou diluição de práticas que, estética ou eticamente, afrontam os novos valores civilizacionais. Se assim não fosse, estaríamos ainda hoje a aplaudir nas ruas muitas das práticas medievais repugnantes.
Sou ainda do tempo em que havia a tradição das lutas de galos nos recreios das escolas. Hoje nenhum miúdo acharia deslumbramento nesse entretém (tal como, certamente, amanhã poucos ou nenhuns de nós o acharão em espetáculos de fácies medievas como são as touradas). No império romano, seres humanos digladiavam-se até à morte nas arenas, perante o aplauso das plateias. São realidades que a civilização extinguiu. Ficaram na história ou na memória, para que sobre elas reflitamos e estudemos, e nada mais.
Rasgar o corpo inocente de meninas, num ato diabolizador do prazer sexual, é roubar-lhes o direito ao futuro, o direito à felicidade. Como tradição, é hoje inconcebível.