domingo, 2 de setembro de 2012

Produção Simbólica e Comunicação



A propósito de ANTROPOLOGIA DA COMUNICAÇÂO de Alexandre Parafita
 
Por Maria Helena Ventura


Um livro pode ter meses ou anos de vida e permanecer uma novidade, um documento de valor inestimável que se relê com prazer. É o caso de ANTROPOLOGIA DA COMUNICAÇÃO, Ritos, Mitos, Mitologias, de Alexandre Parafita (Âncora Editora, Março de 2012) dividido em três áreas que são vasos comunicantes do mesmo tema – os progressos da comunicação e a evolução humana.

Conforme vai demonstrando o autor ao longo de cento e cinquenta e nove páginas, fazendo apelo a contributos dos mais importantes nomes da Sociologia dos Media, comunicar é um desígnio do homem enquanto animal social antes mesmo da consciência de o ser. Pictogramas, ideogramas, silabários, alfabetos, reflectem, antes da era da comunicação de massas, as necessidades locais dos povos partilharem as dádivas quotidianas disponíveis ou recém-descobertas em contextos espácio-temporais específicos e em múltiplas linguagens decifráveis pelos códigos aprendidos ou apenas intuíveis.

 Essas formas de expressão permitem-lhe dialogar não só com os semelhantes mas ainda com entidades sobrenaturais projectadas por crenças antigas. Até o silêncio, acompanhado por sinais inteligíveis por força da repetição, pode configurar um código de comunicação eficaz.

O modo como “as sociedades humanas formam e transmitem o conhecimento acumulado ao longo de gerações…” como se lê logo no início da Introdução, é então o ponto de partida para mais um interessante livro deste investigador, obreiro de um trabalho notável sobre o património cultural imaterial de Trás-os-Montes e Alto Douro, sempre fascinado pelos fundamentos da comunicação, uma das poucas riquezas não perecíveis que gera sempre novos fluxos e que veicula a identidade dos povos.

A Identidade não é imutável, claro, vai-se adaptando aos tempos, mas ainda que em constante reestruturação, alimenta o fio condutor da acumulação de saberes que justificam a consciência de grupos, com características distintas, pertencerem a um todo coeso, um povo reconhecível entre os demais e fiel depositário de um património cultural único, nas suas vertentes material e imaterial.

Inscrever figuras na pedra, caracteres em suportes disponíveis, ou fazer fotografias de pessoas e lugares, são tudo formas de registar de modo duradouro instantâneos de uma vivência que só tem importância se puder ser partilhada. Mas, conforme explica o autor no ponto 1.2 da primeira parte do livro (página 23) os veículos de comunicação do homem “Deixaram de estar limitados à sua pessoa física e aos processos primários de linguagem que lhe limitavam a informação em tempo e em espaço”.

Primeiro os media electrónicos de difusão maciça, “prolongamentos dos sentidos”, vêm transformar o mundo numa aldeia global, como preconizara o canadiano Marshall McLuhan alterando, adulterando, as noções iniciais de comunicação. Depois as redes sociais que ligam todo o planeta num processo interventivo, ainda que prejudicado às vezes por uma personalização exacerbada como espelho de Narciso, conferem a esse processo de reajustamento maior capacidade de construção e desconstrução de conceitos.

As tentativas para contrariar as teses académicas que culpavam os media electrónicos de massificação, nivelamento cultural medíocre, homogeneização abusiva, descaracterização, não se fazem tardar, resultando numa produção de trabalhos valiosos e na aplicação dos resultados. Fica então provado que não há um público, há públicos, pessoas com necessidades específicas e sentido crítico. Daí a produção de bens culturais para todos os que, distintos uns dos outros, se identificam como pertença a um todo.

Mas nenhuma cultura pode ficar alheia à necessária interligação das formas universais de comunicar, à interdependência a que o mundo está sujeito por chegar aqui o que se passa além. Dizia o escritor timorense Fernando Sylvan que “a cultura é a memória de um povo que não morre”. Pois o desejo de preservar essa memória que mantém viva a chama da continuidade, perpassa pela obra de Alexandre Parafita como uma entidade protectora. Daí que a parte II deste seu livro se debruce sobre o trabalho da memória “assumida como um veículo de transmissão intergeracional de valores e saberes que definem a estética da vida e a prática social do povo” (página 66).

Há componentes da comunicação interpessoal que advêm de crenças ancestrais, modos de fazer por elas fundamentados, herdados do processo cognitivo que acompanha o crescimento individual e a construção do imaginário colectivo. Alexandre Parafita tem a preocupação de analisar e registar essa construção simbólica na parte III de ANTROPOLOGIA DA COMUNICAÇÃO…advertindo para a importância da fronteira mal definida entre realidade e ficção.

Quando os registos rotulados como históricos pelos poderes que os legitimam deixam cantos esconsos, mal iluminados, há espaço para os inconformados que não têm voz activa construírem mitos, lendas, estórias, um mundo de fantasia que “ganha depois toda uma dinâmica complexa de ressignificações que as comunidades chamam a si no quadro dos seus impulsos identitários” (página 120).

Procurar os detalhes emergentes desse labor fiel às raízes, afinal as características específicas e locais dos povos, valorizá-las, deixar o seu registo para a posteridade, é um contributo de valor incalculável para a sobrevivência das culturas populares. Essa é a marca do trabalho de investigação do autor, que tem recuperado testemunhos inéditos do património cultural imaterial do nordeste transmontano.

Afinal talvez a fantasia seja o aspecto mais verdadeiro da existência de um povo, o seu traço identificador, se bem que as estórias e lendas percorram caminhos distantes onde vão adquirindo outras roupagens. Fazer essa viagem fascinante com ANTROPOLOGIA DA COMUNICAÇÃO, Mitos, Ritos, Mitologias de Alexandre Parafita, é a proposta de quem releu o livro e o redescobriu com o encantamento inicial. Porque é um documento notável, de discurso irrepreensível, baseado em pesquisa empenhada, tão interessante para quem domina a matéria como acessível aos que se debruçam sobre ela pela primeira vez.


Maria Helena Ventura

Julho de 2012