A propósito de ANTROPOLOGIA DA COMUNICAÇÂO de Alexandre Parafita
Por Maria Helena Ventura
Um livro pode
ter meses ou anos de vida e permanecer uma novidade, um documento de valor
inestimável que se relê com prazer. É o caso de ANTROPOLOGIA DA COMUNICAÇÃO,
Ritos, Mitos, Mitologias, de Alexandre Parafita (Âncora Editora, Março de 2012)
dividido em três áreas que são vasos comunicantes do mesmo tema – os progressos
da comunicação e a evolução humana.
Conforme vai
demonstrando o autor ao longo de cento e cinquenta e nove páginas, fazendo
apelo a contributos dos mais importantes nomes da Sociologia dos Media, comunicar é um desígnio do homem
enquanto animal social antes mesmo da consciência de o ser. Pictogramas,
ideogramas, silabários, alfabetos, reflectem, antes da era da comunicação de
massas, as necessidades locais dos povos partilharem as dádivas quotidianas
disponíveis ou recém-descobertas em contextos espácio-temporais específicos e
em múltiplas linguagens decifráveis pelos códigos aprendidos ou apenas
intuíveis.
Essas formas de expressão permitem-lhe
dialogar não só com os semelhantes mas ainda com entidades sobrenaturais
projectadas por crenças antigas. Até o silêncio, acompanhado por sinais
inteligíveis por força da repetição, pode configurar um código de comunicação
eficaz.
O modo como “as sociedades humanas formam e transmitem o
conhecimento acumulado ao longo de gerações…” como se lê logo no início da
Introdução, é então o ponto de partida para mais um interessante livro deste
investigador, obreiro de um trabalho notável sobre o património cultural
imaterial de Trás-os-Montes e Alto Douro, sempre fascinado pelos fundamentos da
comunicação, uma das poucas riquezas não perecíveis que gera sempre novos
fluxos e que veicula a identidade dos povos.
A Identidade
não é imutável, claro, vai-se adaptando aos tempos, mas ainda que em constante
reestruturação, alimenta o fio condutor da acumulação de saberes que justificam
a consciência de grupos, com características distintas, pertencerem a um todo
coeso, um povo reconhecível entre os demais e fiel depositário de um património
cultural único, nas suas vertentes material e imaterial.
Inscrever
figuras na pedra, caracteres em suportes disponíveis, ou fazer fotografias de
pessoas e lugares, são tudo formas de registar de modo duradouro instantâneos
de uma vivência que só tem importância se puder ser partilhada. Mas, conforme
explica o autor no ponto 1.2 da primeira parte do livro (página 23) os veículos
de comunicação do homem “Deixaram de
estar limitados à sua pessoa física e aos processos primários de linguagem que
lhe limitavam a informação em tempo e em espaço”.
Primeiro os media electrónicos de difusão maciça, “prolongamentos dos sentidos”, vêm
transformar o mundo numa aldeia global,
como preconizara o canadiano Marshall McLuhan alterando, adulterando, as noções
iniciais de comunicação. Depois as redes sociais que ligam todo o planeta num
processo interventivo, ainda que prejudicado às vezes por uma personalização
exacerbada como espelho de Narciso, conferem a esse processo de reajustamento
maior capacidade de construção e desconstrução de conceitos.
As tentativas
para contrariar as teses académicas que culpavam os media electrónicos de massificação, nivelamento cultural medíocre,
homogeneização abusiva, descaracterização, não se fazem tardar, resultando numa
produção de trabalhos valiosos e na aplicação dos resultados. Fica então
provado que não há um público, há públicos, pessoas com necessidades
específicas e sentido crítico. Daí a produção de bens culturais para todos os
que, distintos uns dos outros, se identificam como pertença a um todo.
Mas nenhuma
cultura pode ficar alheia à necessária interligação das formas universais de
comunicar, à interdependência a que o mundo está sujeito por chegar aqui o que
se passa além. Dizia o escritor timorense Fernando Sylvan que “a cultura é a memória de um povo que não
morre”. Pois o desejo de preservar essa memória que mantém viva a chama da
continuidade, perpassa pela obra de Alexandre Parafita como uma entidade
protectora. Daí que a parte II deste seu livro se debruce sobre o trabalho da
memória “assumida como um veículo de
transmissão intergeracional de valores e saberes que definem a estética da vida
e a prática social do povo” (página 66).
Há componentes
da comunicação interpessoal que advêm de crenças ancestrais, modos de fazer por
elas fundamentados, herdados do processo cognitivo que acompanha o crescimento
individual e a construção do imaginário colectivo. Alexandre Parafita tem a
preocupação de analisar e registar essa construção simbólica na parte III de
ANTROPOLOGIA DA COMUNICAÇÃO…advertindo para a importância da fronteira mal
definida entre realidade e ficção.
Quando os
registos rotulados como históricos pelos poderes que os legitimam deixam cantos
esconsos, mal iluminados, há espaço para os inconformados que não têm voz
activa construírem mitos, lendas, estórias, um mundo de fantasia que “ganha depois toda uma dinâmica complexa de
ressignificações que as comunidades chamam a si no quadro dos seus impulsos
identitários” (página 120).
Procurar os
detalhes emergentes desse labor fiel às raízes, afinal as características
específicas e locais dos povos, valorizá-las, deixar o seu registo para a
posteridade, é um contributo de valor incalculável para a sobrevivência das
culturas populares. Essa é a marca do trabalho de investigação do autor, que
tem recuperado testemunhos inéditos do património cultural imaterial do
nordeste transmontano.
Afinal talvez
a fantasia seja o aspecto mais verdadeiro da existência de um povo, o seu traço
identificador, se bem que as estórias e lendas percorram caminhos distantes onde
vão adquirindo outras roupagens. Fazer essa viagem fascinante com ANTROPOLOGIA
DA COMUNICAÇÃO, Mitos, Ritos, Mitologias de Alexandre Parafita, é a proposta de
quem releu o livro e o redescobriu com o encantamento inicial. Porque é um
documento notável, de discurso irrepreensível, baseado em pesquisa empenhada,
tão interessante para quem domina a matéria como acessível aos que se debruçam
sobre ela pela primeira vez.
Maria Helena Ventura
Julho de 2012